10 de dezembro de 2007

Norma e Desvio no Subúrbio: a Cidade de Deus

A cidade do Rio de Janeiro é um produto das contradições históricas que caracterizam a sua população. Ao longo de séculos, as distinções entre homens livres e escravos, ricos e pobres, brancos e negros, tem castigado aqueles que vivem na cidade conhecida como Cidade Maravilhosa. O surgimento das favelas cariocas é um reflexo geográfico desta segregação, legado da reforma urbana empreendida pelo prefeito Pereira Passos, há sensivelmente um século atrás.
A Cidade de Deus é mais recente, e remonta aos anos 60. Surgiu como solução para o realojamento de uma população “que trazia no rosto e nos móveis as marcas das enchentes”[1], e acabou por se constituir num gueto, sendo que em meados dos anos 80 era já um dos locais mais perigosos da cidade. E a favela é, de facto, a personagem principal do filme Cidade de Deus, que narra a forma como este local adquire a sua identidade e cultura próprias, através das histórias dos seus moradores.
A favela se estabelece, desde o princípio, como um local de pouca infra-estrutura onde o poder “oficial” não tem actuação. Por este motivo, lentamente se constitui um conjunto de normas e comportamentos, como resposta a essa nova realidade. E, se os conceitos de norma e desvio são de especial interesse para as ciências sociais, é relativamente consensual que tais conceitos têm como referência um contexto, isto é, a norma é norma em relação ao contexto em que se insere e o mesmo se pode dizer a propósito do desvio.
Segundo a corrente estruturo-funcionalista, que foca a sua análise, entre outros temas, no estudo do desvio, “tornar-se um traficante […] para aceder ao sucesso económico é um exemplo de desvio gerado pela disjunção entre os valores culturais e os meios sócio estruturais para atingir esses valores”[2]. Desta forma, o crescimento de uma indústria do tráfico na favela explica-se como a forma possível de atingir os objectivos económicos que a estrutura social impõe ao indivíduo.
No entanto, com o desenrolar dos acontecimentos, o tráfico passa a ser encarado como uma profissão para quem pertence àquele contexto, ou seja, como uma ocupação que já não corresponde a um desvio mas a parte da norma, e a indústria do crime passa a funcionar na favela como uma instituição social que estabelece leis e cumpre funções que caberiam ao poder público “oficial” – funções como a resolução de conflitos entre moradores, entre outras. Passam, assim, a ser reconhecidos como uma autoridade e a deter o monopólio da violência física, funcionando como um governo paralelo ao qual os moradores atribuem legitimidade. Dessa forma, o que antes eram comportamentos desviantes passam a constituir uma norma. No filme, a personagem Dadinho apresenta essa situação impondo uma espécie de legislação aos moradores da favela. É o que demonstra a frase “Ninguém rouba aqui na minha favela não”, e a punição aplicada àqueles que rompem esse desígnio.
Sendo assim, a Cidade de Deus – e as diversas favelas do Rio de Janeiro – podem ser compreendidas não só como um gueto dentro da cidade, mas como uma sociedade à parte, com regras e normas próprias, com uma cultura (expressa nos modos de falar e vestir, na música), e mesmo formas de assistencialismo criadas de forma a suprir a ausência do poder público. Elas possuem formas de organização social relativamente complexas, que se aperfeiçoam através dos anos. Nesta lógica, todos aqueles que são outsiders fora da favela podem estar perfeitamente integrados dentro dela: traficantes, prostitutas…
Portanto, podemos dizer que a Cidade de Deus constitui uma sociedade com dinâmicas próprias de interacção entre os indivíduos, de reprodução e mudança social. Embora esta estrutura, como de resto qualquer outra estrutura social, não determine as escolhas individuais daqueles que dela fazem parte, pode dizer-se que ela as condiciona, pois estabelece uma série de normas para a vida em sociedade, e dessa forma contribui para a formação de um estereótipo[3] e de um estigma[4] em relação às pessoas que fazem parte do contexto brevemente descrito acima.

[1]LINS, Paulo – Cidade de Deus (1997), p.18.
[2]RITZER, George; GOODMAN, Douglas J. – Sociological Theory (2003), p.247.
[3]“Caracterização fixa e inflexível de um grupo de pessoas”. In GIDDENS, Anthony – Sociologia (2004), p.691.
[4]“Qualquer característica física ou social que se acredita inferiorizar alguém”. In GIDDENS, Anthony – Sociologia (2004), p.691.