4 de janeiro de 2008

Análise sobre Becker

Introdução

O relatório seguidamente apresentado incorpora-se na avaliação da cadeira de Correntes Actuais da Sociologia I, inserida na licenciatura de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e leccionada pelo professor doutor Eduardo Vítor de Almeida Rodrigues.
Neste iremo-nos debruçar sobre Howard Becker, dando um maior enfoque a dois dos seus conceitos: desvio e labbel. Além disso, focalizaremos alguns dos aspectos fulcrais do interaccionismo simbólico e da Escola de Chicago, assim como as duas grandes influências de Becker: Robert Park e Everett Hughes.
No entanto, achamos pertinente iniciar este trabalho com uma breve biografia do respectivo autor.
Howard Becker nasceu em 1928, filho de imigrantes judeus de origem relativamente modesta. Assim, ascendeu socialmente através do trabalho intelectual e da vida académica, atingindo grande prestígio e notoriedade, sendo que, sem dúvida, é o maior expoente vivo da Escola de Chicago.
Apesar de algumas dificuldades, Becker, assim Goffman, construiu uma trajectória profissional brilhante e tornou-se uma das figuras exponenciais da sua profissão nos Estados Unidos e internacionalmente. Estudou e colaborou no Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago. Mas como encarava Becker a sua vida de estudante? “…Mesmo entrando para o Departamento de Sociologia, eu não tinha sérias intenções de me tornar sociólogo. Eu tinha a séria intenção de me tornar um grande pianista de jazz. (…) A Universidade era uma actividade de lazer, uma espécie de hobby. E isso teve um resultante interessante, porque eu não tinha ansiedade em relação aos estudos. Se me saísse bem, óptimo, se não, não tinha importância. (…) Eu só estava preocupado com o suficiente para passar de ano, nunca liguei para provas, nunca me preocupei com a tese. Para mim aquilo era uma brincadeira.” (Velho, 1990, p.116)
Porém, em 1976, leccionava no Departamento de Sociologia da Northwestern University em Evanston, Illions. No entanto, Becker foi pianista profissional de jazz, como tanto ambicionava, e, depois de hesitar, é que assumiu a sociologia como profissão. Enquanto estudante teve professores que eram uma referência como Everett Hughes e Herbert Blumer, sendo, juntamente com Goffman, considerado, por muitos autores, o sociólogo mais conhecido de um grupo particularmente brilhante que incluía entre outros Anselmon Strauss, Eliott Freidson, Tomalsu Shibutani, William Kornhanseur.
Não obstante, embora tivesse sido aluno do antropólogo Lloyd Warner, (por isso para Becker não existiam como barreiras os limites académicos entre a sociologia e a antropologia), estava mais ligado a Everett Hughes, que se dedicava a pesquisas sobre ocupações e relações sociais.
Em suma, Becker foi heterodoxo nos seus gostos e opções, não se enquadrando em rígidos modelos académicos e existenciais. Dessa forma, a sua obra expressa riqueza de experiência e curiosidade intelectuais, de modo que o trabalho de campo e a pesquisa geral têm certamente em Becker poderosas inspirações.

O Interaccionismo Simbólico e a Escola de Chicago

O interaccionismo simbólico nasceu na América, na Universidade de Chicago, e teve o seu grande desenvolvimento nos anos 60. Quando falamos no interaccionismo, falamos num conjunto de autores que trabalham no âmbito do paradigma interaccionista, embora este seja um conceito ambíguo.
A escola interaccionista adopta o pragmatismo ou a predilecção pelo estudo de terreno nas pequenas comunidades; o uso de métodos não quantitativos e defende a hipótese que a sociedade se constrói e se concebe como um “efeito emergente”, resultado do conjunto das trocas inter-individuais, assemelhando-se com a escola de Chicago.
Além disso, o interaccionismo simbólico fundamenta-se numa série de conceitos básicos, tais como:

Ÿ os Seres Humanos são seres em acção, são agentes;
Ÿ a interacção social forma os comportamentos, é constituinte, fundante e fornece significados para a construção por parte dos sujeitos agentes, do objecto;
Ÿ a acção de cada sujeito altera o quadro de representação dos demais;
Ÿ a actividade humana é o centro regulador da vida social.

Por outras palavras, segundo Herbert Blumer, os três principais fundamentos desta corrente são:

Ÿ os humanos reagem às coisas em função do sentido que elas têm para eles;
Ÿ este sentido deriva ou provém das alterações de cada um com o outro;
Ÿ este sentido é manipulado e modificado através de um processo de interpretação inicial para cada um do tratamento dos objectos encontrados.

Mas como se relaciona a Escola de Chicago com a sociologia? De acordo com palavras de Becker, “o departamento de sociologia começou com a fundação da Universidade de Chicago em 1985. (…) Foi fundado por um homem chamado Albion Small, um ministro protestante que vinha da Nova Inglaterra e tinha sido presidente de um pequeno college. (…) O departamento de sociologia de Chicago realmente fundou a ciência da sociologia nos Estados Unidos. Um dos primeiros que lá se formaram foi W.I. Thomas, que ficou famoso pela frase: «Se o homem define situações como reais, elas são reais em suas consequências». Isso introduziu a ideia da definição da situação, que é uma espécie de ideia fundamental da sociologia.” (Velho, 1990, p.117)
Por outro lado, a sociologia ali desenvolvida teve um certo carácter teórico, mas foi também muito empírica, sendo que muitas das pesquisas tinham uma forte marca empírica e foram planeadas para lidar com problemas sociais contemporâneos, tais como a pobreza, a imigração, a assimilação dos grupos imigrantes pela cultura e a sociedade americanas. Não obstante, os pesquisadores da Escola de Chicago estavam interessados acima de tudo em compreender as condições de vida de todas as pessoas que viviam na cidade.
Para Becker, Robert Park foi a pessoa mais importante no desenvolvimento da sociologia americana e no Departamento de Sociologia de Chicago, acabando mesmo por ser influenciado por este autor. Park criou na Universidade de Chicago um grande projecto de pesquisa, sendo que para ele qualquer maneira de descobrir algo é boa: método qualitativo, quantitativo e/ou histórico. A partir do seu plano de pesquisa, a metodologia começou a ser importante para esta escola. Por tudo isto, Becker afirma que, embora não o tenha conhecido pessoalmente, acredita que ele deve ter sido um homem muito dinâmico e carismático, capaz de persuadir todo o mundo a fazer o que ele queria.
Desse modo surge a questão: afinal, o que caracterizou a chamada Escola de Chicago?
Na perspectiva de Becker é necessário fazer-se uma distinção entre escola de pensamento e escola de actividades, sendo que quando se fala numa escola como a Escola de Chicago, imagina-se um grupo de pessoas que compartilham algumas ideias, enquanto que uma escola de pensamento é definida do exterior. Dessa forma, a designada Escola de Chicago era uma escola de actividades que executava, na sua grande maioria, o trabalho organizado de Park.
Não obstante, quando se aborda este tema, é fulcral incorporar nele o nome de George Herbert Mead, na medida em que foi este filósofo quem desenvolveu uma espécie de infra-estrutura teórica dentro do Departamento. Para Becker foi esta geração, que quando saiu de Chicago, organizou e implantou a sociologia nos Estados Unidos.
Becker considera que Hughes tinha um tipo de mente muito abstracta, sendo que foi este teórico que o alertou para alguns dos artigos importantes que se faziam ou foram feitos como o de Charles Booth. Além disso, Becker e Hughes mantinham uma excelente relação profissional e pessoal, sendo que depois de terminar o seu mestrado, Becker foi assistente de Hughes.
Em resumo, a Escola de Chicago é a primeira expressão do Interaccionismo na sociologia americana. Enquanto um dos modelos de análise interaccionista, é o primeiro modelo teórico consistente da sociologia americana, o que significa que esta emerge na sociologia americana sem esta ter vivenciado um modelo epistemológico positivista. Assim, podemos dizer que a sociologia americana inaugura uma abordagem qualitativa, territorializada e politizada.
Por sua vez, estas características contribuíram para que esta tenha surgido para resolver problemas concretos e como resposta a problemas sociais e não para legitimar a ciência e a sociedade, sendo, por isso, natural que se tenha aproximada das instâncias políticas.
Por tudo isto, esta escola é fracturante/antítese face ao positivismo, pois para este território era uma variável que não fazia sentido na sociologia. Pelo contrário, a Escola de Chicago usa o território como uma fonte de obtenção de resultados práticos e possíveis de se tornarem em medidas de intervenção política, sendo que a esta escola interessa compreender como é que as classes se organizam e projectam a sua organização de forma selectiva. Logo, esta é uma abordagem que incide sobre os comportamentos desviantes.
Não obstante, esta abordagem incide numa vocação praxiológica da sociologia, tratando a sociologia um instrumento de acção e não apenas um recurso académico e científico, sendo que o relativismo científico é compensado por esta vocação, pela lógica de intervenção nos problemas sociais assumida pelas políticas vigentes. Assim, a Escola de Chicago mais do que politizada é um modelo institucionalista que assume a necessidade de mobilização de políticas.
Concluindo, esta foi uma corrente bastante presente na teoria de Becker, como iremos apresentar nas próximas páginas.

O Desvio e o Labbel em Howard Becker

Howard Becker defende que os comportamentos sociais não podem ser explicados a partir de esquemas rigidamente estabelecidos segundo papéis sociais estereotipados, mas sim pela interacção entre os sujeitos. “O comportamento dos indivíduos só é compreensível a partir das interpretações que cada um faz dos mecanismos de interacção social em que se encontra envolvido.” (Maia, 2004, p. 36)
Em termos sociológicos, o desvio não é só um comportamento em que o indivíduo infringe uma norma por acaso, mas trata-se de uma infracção motivada e contextualizada. Sendo assim, o desvio é um conjunto de comportamentos que não são conformes às normas e valores partilhados na sociedade e, por isso, podem ser sancionados pela mesma.
Desta forma, ao estudarem os comportamentos desviantes, os sociólogos procuram perceber porque uns são considerados como tal e outras não.
Noutro contexto, “o desvio é uma categoria semântica com base na qual certos indivíduos são identificados. É um esquema de construção das imagens do Eu, isto é, um princípio pelo qual se regem os membros de um grupo nas questões que têm com os outros.” (Herpin,1982, p.83)
Este conceito sempre foi alvo de várias considerações por vários autores. Durkheim perspectiva-o como resultado de ausência de regulação moral e determinadas tensões estruturais na sociedade, criando-se o conceito de anomia. Merton tenta-o explicar como sendo um conflito entre as normas e os valores da sociedade. Para Marx, o desvio corresponde a uma opção que os indivíduos tomam em resposta a situações de desigualdade existentes na sociedade. Daí acreditar que o desvio é uma consequência da diferente distribuição de poder na sociedade, onde existe a tentativa de manutenção desse mesmo poder por parte da classe dominante subjugadas as restantes classes. Para os interaccionistas, o desvio é um “fenómeno socialmente construído:” (Giddens, 2004, p. 211)
Assim, sendo Becker um interaccionista, como perspectiva ele o desvio? problema sociológico deste autor é estudar o processo de exclusão pelo qual um indivíduo acaba por ser considerado como desviante, ou seja, “o acto de desvio deixa de ser um momento em que o indivíduo transgride a lei, para ser o processo complexo no decorrer do qual o indivíduo vem a ser designado como desviante.” (Herpin, 1982, p. 83)
Para Becker, o desvio/o outsider é objecto de estudo para a sociologia devido ao seu carácter padronizado, competindo ao sociólogo distinguir as fases e estudar as condições sociais que entravam ou facilitam o caminho para o desvio. Uma dessas condições pode ser a reacção societal, na medida em que a infracção à norma só instaura uma carreira de desviante na condição dessa infracção ser reconhecida socialmente como tal, ou seja, um indivíduo é considerado desviante quando a sociedade o encara como tal.
Desmistificando esta questão, Lembert parte do princípio de que o desvio é mais frequente do que é concebido pela maioria, dividindo o desvio em duas categorias:

ð Desvio Primário, que é o comportamento inicial de transgressão às normas e leis vigentes que de certa forma não fica ligada à identidade do actor social, ficando assim à margem da sua identidade, sem consequências graves tanto para si como para a sociedade;

ð Desvio Secundário, que corresponde a um comportamento em que os papéis sociais se tornam meios de defesa, de ataque ou de adaptação aos problemas explícitos ou implícitos criados pela reacção societal do comportamento desviado primário.

Na perspectiva de Goffman não existem desviantes, isto é, não é necessário cometer uma infracção para ser desviante, visto que qualquer sujeito, em qualquer momento da sua vida, pode revelar-se possuidor de determinantes que o tornem desviante em relação aos grupos nos quais age.
Já para Becker, o desvio é ele próprio plural, uma vez que adquire múltiplas formas de reacção, mas padronizado, pois rejeita as estruturas definidas. Neste sentido, a Becker não interessa, em primeira instância, analisar a organização interna dos outsiders/desviantes, na medida em que os seus comportamentos são eles próprios padronizados, antes lhe interessa o reconhecimento dos outsiders enquanto objecto de estudo, dado que possuem regras e hierarquias próprias, e a análise que se estabelece entre os padrões normais e os padrões desviantes.
Na sua obra “Outsiders”, o autor aborda as definições de desvio, afirmando que “todos os grupos sociais estabelecem regras e esforçam-se, em certas circunstâncias e em certos momentos, por as fazerem cumprir (…). As regras sociais definem situações e tipos de comportamentos apropriados a essas situações, especificando quais as acções legítimas e proibindo as outras como más.” (Cit. por Herpin, 1982, p. 86 e 87)
Perante este excerto é-nos perceptível que Becker define o desvio como uma infracção às regras do grupo e como «designação» que certos membros do grupo atribuem a alguns outros, designação com base na qual rejeitam os elementos assimilados.
Dessa forma, desvio e labbel/rótulo são conceitos interrelacionados, ou seja, o processo de rotulagem não apenas identifica, mas ao mesmo tempo distingue, sendo que muitos actores sociais de um determinado grupo rotulam (labbel) o desviante de desviante quando este infringe uma regra. “O comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como desviante. [sublinhado nosso]” (Giddens, 2004, p. 212) Mas este fenómeno de rótulo é apenas um aspecto secundário da questão central do comportamento desviante, nomeadamente a infracção das regras.
Por outras palavras, a Teoria da Rotulagem/do Labbel é o produto de um processo relacional entre aqueles que são tidos como tendo comportamentos desviantes e aqueles tidos como tendo comportamentos não desviantes/normais, pois, para o autor, a mesma realidade que produz a norma produz também o desvio. Logo, o comportamento desviante é produto de uma relação societal, ganhando o desvio perfil social.
Neste sentido, o desvio é uma produção social que se dá pela rejeição e, ao mesmo tempo, pela incorporação da identidade. Além disso, o labbel/a designação é uma forma de controlo social pela qual o desvio é corrigido, sendo que também é uma forma de fazer existir regras, sob a forma da sua racionalização.
Mas como se corrige o desvio? Primeiro, dirigindo-se ao indivíduo que apresenta tal comportamento para impedir que no futuro isso volte a acontecer. Segundo, dirigindo ao grupo enquanto colectividade, dado que a punição de um dos seu membros é a ocasião de reafirmar as regras estabelecidas pelo e no grupo.
Em suma, para os interaccionistas e para Becker, o desvio é uma construção social, dando-se pela forma como os outros irão ’ver’ o indivíduo rotulado. Por isso, “se se quer perceber e estudar o desvio, não se deve partir dos indivíduos, nem dos seus comportamentos, nem das regras eventualmente transgredidas, mas das situações nas quais possam vir a ser designados desviantes.” (Herpin, 1982, p. 89), sendo que a eventual distribuição das designações de desviantes é produto da interacção.
Assim, “do ponto de vista sociológico, o desvio é um conceito relativo. O comportamento é sempre aferido pelas normas sociais em vigor. Como as normas não são universais nem eternas, os comportamentos acabam por ter diferentes leituras, de acordo com o grupo e com o contexto espacio-temporal.” (Dias, 2002, p. 30)

Ana Patrícia Costa e Marta Coelho