25 de novembro de 2007

“A CIDADE DE DEUS”


“A CIDADE DE DEUS” um filme de Fernando Meirelles (2002)
O processo de socialização dos grupos desviantes em contexto (sub) urbano


O filme “A Cidade de Deus” é um retrato profundo de um mundo suburbano, que muitos de nós seríamos tentados a esconder, tal a crueza com que nos transporta à “realidade”. Porque ela existe. “Construído pelo governo de Carlos Lacerda entre 1962 e 1965, em Jacarepaguá, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, o conjunto habitacional Cidade de Deus recebeu os primeiros moradores em 1966. Eram desabrigados de uma das piores enchentes que o Rio já enfrentou. Pouco depois, os moradores de outras 60 favelas (algumas destruídas por incêndios criminosos) foram deslocados para lá. A geografia da Cidade de Deus tem como base prédios pequenos de, no máximo, cinco andares e casas de alvenaria, cercados por barracos de madeira. O crescimento desordenado logo transformou o conjunto habitacional num labirinto, favorecendo a instalação do tráfico de drogas. As primeiras guerras de quadrilhas explodiram em 1979. Hoje, a Cidade de Deus tem mais de 120 mil habitantes.” (http://um-buraco-na-sombra.netsigma.pt/f_luminosos/index.asp?op=2&idn=39).
Este filme é assim baseado em histórias reais, até porque o enredo é protagonizado sobretudo por habitantes da própria Cidade de Deus, que, entre figurantes e actores principais, na sua maioria foram crianças e adolescentes recrutados pela direcção do filme.
Para a sociologia, este filme é de uma riqueza imensa. Pode trazer, numa aplicação à luz da teoria, uma perspectiva formulada através da análise dos processos migratórios e dos processos de socialização dos grupos desviantes. Conceitos como estes aliados a muitos outros, interligam-se formando quase que um ciclo vicioso implícito ao longo de todo o filme.
É importante começar pela análise dos processos migratórios, não porque o problema seja a migração em si, mas porque as causas podem situar-se antes no tipo das medidas governamentais tomadas e dos seus efeitos perversos.
Construir um bairro onde concentrar todos os possíveis candidatos a desordeiros da civilidade e da norma. Assim, os discriminados são obrigados a viver em casas de madeira, bairros de lata. Sem condições sanitárias, água, luz e esgotos. Revelam então uma vontade de lutar pela sobrevivência, recorrendo à violência, ao roubo, à venda de droga. A única saída é seguir os caminhos amargos do crime, que levam na maioria das vezes, à morte. À morte para vingar inocentes e não inocentes, à morte por roubo de poder. Formam-se grupos considerados “desviantes”. Que fogem à norma. E segundo Howard Becker, “o acto de desvio deixa de ser um momento em que o indivíduo transgride a lei, para ser o processo complexo no decorrer do qual o indivíduo vem a ser designado como desviante.” (HERPIN, Nicolas (1982) – A Sociologia Americana – Escolas, Problemáticas e Práticas. Porto: Edições Afrontamento. p.83-84.).
Desde que um grupo de rapazes daquele bairro se une para roubar, matar e vender droga e o faz consecutivamente, deixa de haver uma única transgressão da norma e forma-se um ciclo de várias “aprendizagens” que resulta numa reacção societal. “A infracção à norma só instaura uma carreira de desviante na condição dessa infracção ser socialmente reconhecida como tal”. (HERPIN, Nicolas (1982) – A Sociologia Americana – Escolas, Problemáticas e Práticas. Porto: Edições Afrontamento. p.84.).
Os comportamentos dos adolescentes representados neste filme são estigmatizados e condenados porque a sociedade ditou regras, definindo certos e determinados comportamentos como bons ou maus. Fenómenos sociais como os que são tratados neste filme têm as suas causas, não nas características intrínsecas do indivíduo, mas sim nas imposições da sociedade, às quais os actores sociais ou se sujeitam ou se negam a fazê-lo. Desde crianças que aprendem a viver no meio da miséria, do crime, do roubo, da droga. E são assim socializados. Crescem quase sem ir à escola, em famílias semi-presentes, que apesar de tudo tentam puxá-los para o bom caminho, com uma consciência impotente e no fundo, resignada. Querem chegar a adolescentes, afirmando que “já fumei, cheirei, matei e roubei. Já sou homem.” Tendem a seguir o seu grupo de referência. Crescem a aprender a manusear armas. Todo este processo de socialização não encaixa no processo de muitas crianças e jovens do mundo chamado de ocidental e desenvolvido. A socialização de muitas crianças e jovens das favelas e dos “bairros de lata” é feita através quase de um processo contínuo, sempre baseado no mesmo tipo de aprendizagem. Quase não existe uma socialização primária, junto do seio da família que transmite os primeiros ensinamentos; quase não existe uma socialização secundária incluindo o papel da escola no incentivo ao estudo, com desejo futuro de ascensão social; existe apenas um único fio condutor, uma lição de vida guiada pelas influências muito fortes do grupo de pares e por todo o ambiente de vivência num gueto, num barraco de madeira, num bairro apelidado de social. Os vários agentes de socialização são assim substituídos unicamente pelos grupos de pertença, de pares.
Neste clima, aliado à desordenada organização territorial, prevalece um rapaz que consegue desviar-se do mesmo destino de muitos outros, seguindo a carreira de fotógrafo. Um testemunho da corrupção das entidades policiais, que inculcam a ideia que ali “ninguém ouviu nada, ninguém sabe de nada”. Um lugar exemplo, que a sociologia pode utilizar para retomar incessantemente a compreensão dos muitos fenómenos sociais aqui retratados. Um lugar onde as armas são usadas com “Fé em Deus” e às vezes até em nome Dele…

Ana Raquel Simões (2º Ano)
Demografia e Migrações
raquelita118@hotmail.com